De: Lorrayne Saraiva
Olhei apavorada para o filete de sangue que escorria fino, como uma minhoca, pelo chão de azulejo branco e maculado do banheiro. Depois, não mais estava apavorada; era a vida, pensei resignada, quase estóica. Mulheres menstruam desde o início dos tempos, e continuarão a menstruar até que façam algo com o avanço da ciência, para reprimir seus hormônios.
Mas ainda havia algo de novo, desconcertante, e inegavelmente sedutor, na primeira marca de sangue que deixei em minha calcinha. A calcinha em questão era de algodão rosa, com uns babadinhos rentes a costura. Não era, em definitivo, uma calcinha madura para receber minha primeira menstruação, pensei aborrecida. Deveria ter acontecido em uma calcinha roxa, modelo fio dental, ou pelo menos de renda negra.
Desde que havia acontecido; o sangue, a dor fina e rasgante ao pé da barriga, o susto, a aceitação, eu escorregara para o chão do banheiro, permanecendo lá por horas. Sem razão, pensei em minha mãe: o avental alaranjado ruído de traças que ela usava no preparo de bolos, e as broncas que ela me dava por colocar o dedo sujo na massa. As botas militares de papai, e seu cinto de couro marrom, que tantas vezes – naquela semana mesmo -, marcou-me a parte interna das pernas, e lombar, por eu ter sido uma menina levada além da conta. O cheiro de chiclete de menta que saía da boca de Billy, toda vez que eu o beijava. Meu quarto e meus pôsteres de astros de cinema na parede. Os passeios semanais com Dolly, e a tonelada de milkshake de morango que consumíamos. Tudo, até então, parecia normal, nos conformes. E como eu já disse, todas as mulheres menstruam, é da natureza! Então por que, mesmo sabendo de tudo isso, para mim, aquele sangue ainda era tão assustador e grotesco como se tivesse vindo da cabeça de alguém assassinado?!
Olhei novamente para o centro de minhas pernas e com novo espanto, analisei uma pequena poça rúbea que havia se formado debaixo de mim. Parecia lama vermelha. Parecia uma cena inimaginável, como E.T.s dançando o foxtrote. Meu corpo estava produzindo sensações contraditórias, e eu me sentia em ebulição, como uma garrafa de refrigerante prestes a explodir.
Desejei contar à Billy. Contar com os mínimos detalhes cada aspecto daquela nojeira avermelhada. Ele diria que estou inventando, e que provavelmente vi a cena em algum filme de terror. Depois diria que meninas não menstruam assim, com aquela cara de debochado, revirando os olhos. Dei um murro no azulejo de tanta raiva que fiquei de Billy, e de todos os homens que acham que entendem os mecanismos femininos!
Então, pensei em me abrir com Dolly. Dolly era mulher, entenderia. Mas pensando bem… Dolly ainda não tinha menstruado – porque aí eu saberia – e ficaria com inveja da minha nova condição.
Raios, eu teria que guardar aquele acontecimento só pra mim!
Levantei do chão, e em pé, olhei para a pequena poça carmesim.
Caminhei até o espelho, e dei de encontro com meu novo eu. Não parecia nada diferente, constatei desanimada. Eu ainda era a mesma garota franzina e amarela, exceto por… Com o dedo, toquei parte do sangue que ainda cintilava líquido em mim, e fiz duas marquinhas nas bochechas, como uma pintura de guerra.
Minha barriga, coxas e joelhos também estavam manchados de sangue, mas julguei a cena toda tão poética que, não tive coragem de entrar no banho. Quis ficar suja de mim por mais tempo. No final das contas, aquele foi meu mais sagrado e íntimo momento antes da guerra começar.
“Assim posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe fallava mais; mas, se lhe não fallava,
Sentia o olhar que me abrazava.
Conjecturando fui, tranquillo, a gosto,
Com a cabeça no macio encostoOnde os raios da lampada cahiam
Onde as tranças angelieaes
De outra cabeça outr’ora alli se desparziam,
E agora não se esparzem mais.”
O Corvo – Edgar Allan Poe
Nossa! Muito bom esse. Todo simbólico. A personagem não só perde a inocência, mas também encara a tal da maturidade. Fiquei com a sensação de que a história não acaba por aí. Prólogo de algo maior?? A escritora é muito boa em criar imagens. Adorei. 🙂
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