Conhece-os de outras paragens e os procura pelos cômodos da casa. Tão pálidos. E trazem todos as mãos ocupadas. Uma gaiola vazia, uma bússola, uma taça quebrada. Tem um pássaro ferido naquele canto do quarto e sobre o criado-mudo, um anzol retorcido, um cinzeiro, um cigarro aceso. Borboletas de asas urticantes voejam e pousam nas paredes, nos móveis, no lençol da cama antiga onde dei à luz cincos filhos. Ah, e as estampas de santos entremeadas de cacos de vidro no chão onde piso. E não sei se já lhe disse que agora tomamos conta de um menino. Um menino inquieto. Arre! Chama-se Gil. Ou Dil. Acho que Gil. Acho. Apareceu aí, aos prantos. Agora ele deve estar na escola e só volta tarde porque vem vadiando pelas ruas com os amigos. Um bando. E não se esqueça que preciso ir para a minha casa. Quero ir pra casa. Esta não é minha casa. Não vai esquecer. Não vai esquecer. E não esquece que perdeu dois filhos, os dentes, o brilho dos olhos. Dois filhos. Aquela tarde. Tarde avançada quando fui buscá-los seguindo a linha do trem. Tinham saído muito cedo para pescar e armar arapuca para passarinhos. Paixão por passarinhos. Aquela tarde. O bambuzal tombado pelo vento. O zumbido do vento. Os meus gritos. E quanto a estas alianças, lá, na loja mesmo, seu pai e eu colocamos nos dedos. O casamento para novembro. Agora elas estão aqui. Dentro da minha viuvez. Dentro do pesadelo.
Antes de dobrar a esquina me virei. Ela acenava da entrada do beco sob a luz amarela de um poste da avenida. Ela mais curvada. Mais magra. Madrugada. Último horário do ônibus. Vou aguardar as suas cartas. Promete. Promete. Agora anda! Vai, vai. Que os filhos. Os filhos são mesmo para o mundo e para este lado do peito. A sua voz que seguiu comigo. Daquela vez, anoitecia quando saíamos do consultório do médico. Enquanto esperávamos um táxi, ela baixou a cabeça, brincou com um botão frouxo da minha camisa; secou uma lágrima. Depois procurou meus olhos para que eu jamais pudesse esquecer. De mãos dadas ficamos em silêncio. O amor. O amor mais forte. Igual o amor. Igual. E a revolta. A minha revolta. E o medo. O meu medo mil vezes aumentado. Algo muito grave nos aconteceu.
Seu conto. Adoro como conta. Cheio de poesia em seus relatos. Nos remete a imaginar as cenas com a suavidade de sua linguagem. Parabéns Ernane
CurtirCurtir
Obrigado, Manuella, vc sempre presente com seu comentário q muito me estimula por sua sensibilidade e amor às Letras.
CurtirCurtir
Adorei o conto. Narrativa perfeita. Grande, Ernane. Muito bacana a publicação no site.
CurtirCurtir
Muito grato pela sua leitura, sua atenção, seu comentário, Sandra! Uma honra!
CurtirCurtir