CONTO: OS FANTASMAS DE ELVIRA

Elvira acordou, abriu devagar os grandes olhos escuros acetinados – como seu penhoar pendurado na maçaneta da porta – e erguendo seu alquebrado corpo pela incômoda noite de sono, pisou os pés velhos no chão. Joanetes e unha encravada tocando o porcelanato frio, trouxeram um suave arrepio pelo seu corpo.

Quem era Elvira? Por que isso importa? A própria dizia que não era ninguém. “Alguém que ficou para trás”, afirmava lamuriosa. Quase não saía mais, salvo as idas ao mercado popular às segundas, pela manhã. Parou de encontrar-se com suas amigas, e em dias mais pestilentos, nem sequer abria as cortinas.

“Os fantasmas”, dizia ela em voz alta para ninguém, “os fantasmas me tomam muito tempo.” Olhava para a sala de estar e balançava a cabeça. “Eles me cansam”, reclamava para o vazio.

Toda vez que ia preparar para si um bom assado, ou mesmo um relaxante banho de banheira, era observada e vigiada por eles – os fantasmas. Ficava louca! Aborrecida, arremessava vasos de porcelana na parede. Dias e dias se passavam até que ela tivesse a disposição de varrer os cacos. “Tudo culpa de vocês!” Praguejava no auge de sua irritação.

As vezes, chorava. E para cada lagrima derramada, havia um fantasma para lhe trazer o consolo. “Não quero falar com vocês”, dizia dengosa, mas depois já estava usando o corpo translúcido de um deles como lenço. 

Naquela manhã específica, estranhou a quietude e serenidade da casa. Nenhum fantasma cantarolava, dançava, ou fazia qualquer tipo de artimanha. E Elvira, que tanto reclamava da falta de sossego, sem seus queridos amigos incorpóreos, sentiu-se horrivelmente sozinha.

Foi até o pátio, e observou o balanço; este movia-se lentamente pelo toque de uma cálida brisa. Não era porque o traseiro de um fantasma o balançava, era apenas o vento, concluiu desanimada. Entrou novamente em casa, e caminhou pelo corredor que ligava os quartos e banheiros. Continuou avançando até encontrar-se novamente na sala de estar. Fitou o piano que ficava no canto esquerdo da sala, próximo do abajur de cúpula em forma de colmeia, e da pequena estante de ferro. Nenhuma tecla se moveu. Nenhuma nota ecoou. 

Preocupada com o sumiço dos fantasmas, Elvira exclamou sua dúvida com as mãos para cima. Mas ninguém respondeu, tudo o mais parecia adormecido.

Exausta e inteiramente só, com um peso do que parecia ser uma derrota nas costas, deitou-se no sofá e logo caiu em sono profundo. Em meio ao cenário enevoado que surgiu debaixo de suas pálpebras, viu que estava no topo plano de uma montanha, com grama verde e uma ou outra árvore magra. Diante de si, um penhasco se estendia, e do outro lado, podia se avistar um outro topo de montanha, exatamente igual ao que ela estava; com seus amigos fantasmas acenando.

“Venha! Pule, você consegue!” Um deles gritou. Os outros uivavam, e balançavam os braços finos, transparentes. Confusa, mas feliz por revê-los, Elvira lamentou que um derradeiro precipício os separasse.

“Venha! Junte-se a nos! Pule!” Eles continuavam dizendo. E quando estava prestes a saltar, Elvira recuou, e eles ficaram a observá-la. O vento fazia seu cabelo chicotear em sua face, e mesmo sob a ameaça de jamais se juntar à eles novamente, Elvira sabia que, havia um motivo para que ela estivesse do lado oposto ao deles.

“Adeus”, disse Elvira. Os fantasmas com suas peles de vidro ainda a observando. “Adeus!”

Quando finalmente abriu os olhos daquele cochilo, a hora do almoço se aproximava. “Esqueci que estava viva!” Pensou outra vez em voz alta. “Esqueci da vida!”

O som alto da campainha, a fez saltar de susto. Com passos de senhorinha, rumou até a porta, e ao abri-la, soltou um suspiro de alívio; era Rita sua amiga e vizinha, Morta há mais de vinte anos.

“Amiga querida!” Exclamou. “Entre, tenho tanta coisa para lhe contar…”

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Site desenvolvido com WordPress.com.

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: