CONTO: MEU QUERIDO EDGAR

“E assim ‘stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.”

Annabel Lee, Edgar Allan Poe, 

tradução de Fernando Pessoa

O dia está perfeito. Nuvens brancas preenchem o céu e uma fina garoa refresca minha pele. Me aproximo dos limites da falésia, sentindo o vendo forte, que balança as árvores e folhas em uma dança cambaleante, empurrar meu corpo para trás. Observo o oceano revolto lá em baixo, a maré alta, mal pode-se ver a areia. Uma paisagem dominada por ondas acinzentadas chocando-se e chocando-se contra a rocha. Respiro fundo, sentido o cheiro deste lugar, que sempre acalenta meu coração.  

Mal posso acreditar que te permitiram de ser enterrado aqui, meu querido Edgar. Ainda que muitos e muitos anos atrás, me impressiona que sua família ainda pudesse usar o cemitério ancião ao lado da pequena capela. Mas aqui é perfeito para você, meu amor, você merece o descanso junto do mar, da mesma forma que passamos tantos momentos. Você merece essa imagem perfeita que cabe em uma pinturade um reino distante. A falésia, a solitária igrejinha com suas pedras cobertas de musgo, o cemitério idílico, o som raivosodo oceano e o cheiro de sal. 

Volto alguns passos, me aproximando seu túmulo eternamente cercado dos sons do oceano. Acaricio a rocha envelhecida, tão danificada pelo tempo, pelo vento, pelo mar, que mal posso ler seu nome. Volto os anos em mente, buscando reviver seu amor o amor que você tinha por mim. Concentro-me na memória, posso ver o sorriso em seu rosto tão tão jovem. 

Éramos quase crianças, afinal, correndo pela praia como se dela fossemos reis, passando dias largados na areia úmida, nos abraçando e sentido no outro a pele salgada, nos amando com um amor que era mais que amor. Eu e você, querido Edgar. Apenas eu e você, com nosso mais puro amor, capaz de despertar inveja até mesmo nos anjos escondidos no céu. 

A inveja que te trouxe aqui, querido, tantos anos atrás, e te mantém longe de mim. A frieza o afastou de mim. E agora, amado Edgar, você permanece eternamente neste túmulo, neste perfeito cenário, perto do mar. Talvez agora você seja mesmo rei destas areias, destas ondas que encontram a falésia com tamanha força, como se quisessem te alcançar. Mas, aqui em cima, apenas eu posso correr meus dedos pelos detalhes de sua lápide. Somos apenas eu e você. 

A inveja perturbou nosso pequeno paraíso, meu amor. A inveja de nós. Ela trouxe as tempestades, os furacões e as tardes frias. Invadiu o que era nosso. Tornou-o gélido e te matou, meu querido, meu Edgar. 

Mas nosso amor era mais forte, muito mais forte que os outros amores, daqueles mais vividos, até mesmo mais sábios que nós. E não há inveja, nem mesmo poderosa como a dos anjos do céu, ou de demônios dos submundos desse terreno, que irá verdadeiramente nos afastar. Ainda temos e sempre teremos nosso reino perto do mar. Nossas almas nunca serão afastas, Edgar. 

Por que jamais surge a lua nos céus escuros sem que ela traga consigo sonhos de você, da beleza que eram seus lábios a me chamar, da sua voz melodiosa ao entoar ‘Annabel, querida’, de suas mãos nas minhas, do seu cabelo selvagem ao vento. Por que as estrelas sempre me mostram, com toda a imensidão de suas luzes mortas, o brilho de seus olhos. E durante a noite, em minha cama, escuto a proximidade do mar, as ondas quebrando, e me lembrando de meu amor, de meu Edgar, de minha vida, que agora permanece encarcerada nesta lápide junto ao mar. 

Mas aqui, assim, podemos ficar juntos, querido. E acredite, não há dia em que eu não me arrependa, Edgar, de ter sido a mão que te colocou aqui. Neste perfeito e maldito túmulo cercado do vento e do murmúrio do mar.

2 comentários em “CONTO: MEU QUERIDO EDGAR

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  1. Gostei muito da narrativa. Consegui me imaginar na beirada das falésias, escutando as ondas chocando contra as paredes lá embaixo e a lápide gélida enquanto a amada a tocava com as pontas dos dedos desnudos… muito legal! Minha mente saiu flutuando!

    Curtido por 2 pessoas

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