Era um velho casarão, que depois de reformado, se transformou em um asilo muito bem-organizado, com uma ampla cozinha, refeitório, despensa, salão de atividades recreativas e de televisão, bem como suítes e um alpendre rodeado por um jardim florido e belo gramado.
E é nesse alpendre que Agenor, um senhor com seus 76 anos, todas as tardes, lá pelas 16 horas até o entardecer, ficava em sua cadeira de rodas, com seus olhos fechados, se deleitando, ouvindo os pássaros voar cantando o toque de recolher nas árvores abrigadas em volta dos muros.
—Senhor Agenor. Chama a enfermeira, tocando-lhe os ombros.
Com muita dificuldade, o homem abre os olhos.
—Nossa! Hoje cochilei profundamente. Ora, ora! Cadê a rabugenta da Júlia?
—Hoje sou eu quem vou fazer o trabalho dela.
—Então é nova por aqui, pois não te conheço.
—Não se preocupe com isso, a Júlia está com outros idosos. Eu me chamo Hilda. Responde a calmamente, com um semblante sereno.
—Está bem, mas me deixa ficar só mais um pouquinho. Roga o homem.
—O que o senhor gostaria de fazer verdadeiramente?
Ele sorri com ar de deboche.
—Minha senhora, o que um homem na minha idade, inválido, pode fazer, a não ser ficar olhar o sol se esconder, tomar um banho, comer e dormir?
—Falo de outra coisa. No seu íntimo, o que mais quer?
—Rever minha família. Ah! Meu Deus, como estarão meus três filhos, netos, talvez bisnetos, amigos que nem sei se ainda vivem. Como vê, algo impossível.
—Não é impossível!
—Não brinque comigo senhora, sou um velho e nem sei como está meu coração.
—Quanto tempo faz que não os vê?
—Quando vim para cá, meus filhos João Carlos e Mauricio me visitaram algumas vezes, meu genro e as noras, nunca esperei que viessem mesmo. Mas Patrícia, minha filha adorada, nunca vi igual, um dia, trouxe meu netinho Fabinho. Uma coisa linda, brincou e correu por tudo aqui.
—Deve ter sido um momento de muita alegria para o senhor.
—Se foi, a senhora nem imagina. Chorei muito de emoção.
—E quanto tempo faz isso?
—O Fabinho na época deveria ter uns dois aninhos. Fala o homem forçando a memória para recordar.
—Bem, se hoje Fabinho tem 19 anos, então faz 17 anos que sua filha veio te ver.
—Puxa, tudo isso? Também, pobrezinha, trabalha muito, cuida de três filhos, fica difícil mesmo. Mas tenho certeza de que sente saudades de seu velho pai.
—E seus filhos?
—Bem, se ela, como mulher tem suas dificuldades, imagine eles como homens e provedores de suas casas. Justifica o idoso.
—Está certo senhor Agenor. Então se eles não comparecem aqui no asilo para te ver, vamos até eles.
—A senhora fala sério?
—Claro que falo. Vou empurrando sua cadeira, só feche os olhos que logo estaremos lá.
—Claro que isso é um sonho não é senhora Hilda?
A mulher não responde e insiste para que Agenor não abra os olhos. Numa alegria incontida o velhinho grita entusiasmado.
—Não importa, eu aceito esse sonho e não quero acordar antes de chegar à casa dos meus filhos.
Agenor não sabe quanto tempo ficou com seus olhos fechados, mas, Hilda lhe pede que os abra.
—Chegamos senhor.
—Estou na minha rua… meu Deus! Está diferente, antes era de paralelepípedo e substituíram pelo asfalto. Mas reconheço… é a minha rua.
Mais à frente, a mercearia de seu grande amigo Freitas, havia se transformado num bar, com muitos homens bebendo, jogando sinuca, rindo e conversando alto.
—Puxa, o que se tornou a mercearia do Freitas? Era meu grande amigo. Será que ele vendeu?
—Ele morreu e o filho transformou o espaço em bar.
—Só pode ser o Daniel, esse moleque sempre foi terrível mesmo, desde novinho não gostava de estudar, andava com maus elementos, vai ver que o Freitas morreu de desgosto. Critica Agenor.
Hilda permanece em silêncio. Passam em frente à escola.
—Meu Deus, que desenhos e rabiscos são aqueles no muro da escola?
—Isso se chama pichação.
—Nessa escola, eu estudei, depois meus filhos e tenho certeza de que meus netos e bisnetos também estudam. Fala orgulhosamente.
Quase no fim da rua, param em frente a uma casa com parte das paredes descascadas, vidraças quebradas, muro com buracos e sem portão.
—Minha casa! Que houve com ela? Parece abandonada.
—Não está abandonada, porque sua família mora aí.
—Nossa que desleixo! Aquela parte ainda está com a pintura que eu mesmo fiz, bem antes de ficar inválido. Que situação! Pobrezinhos, devem estar passando muitas dificuldades e não tiveram condições de arrumar.
—Vamos entrar? Fala a mulher empurrando a cadeira para dentro da casa.
—Sabe senhora Hilda, vou dizer que agora, estou aqui para colocar tudo em ordem. Sei que eles vão gostar da minha ajuda.
Entraram na casa e o aspecto no interior não era diferente. Tudo desorganizado e sujo.
—Mas, aquela é minha filha Patrícia? Está bem gorda, e como envelheceu coitadinha. Olha que vestido estranho, tão curto, seus cabelos esgadelhados, parece doente. O homem não contém e grita…
—Patrícia! Sou eu seu pai. Mas, logo desiste, lembrou que estava sonhando.
Patrícia se joga no sofá, com alguns sanduíches num prato e uma garrafa de 2 litros de refrigerante, enquanto degustava, assistia seu seriado preferido na televisão smart de 50 polegadas. Eles deixam aquele ambiente, seguindo até a cozinha, e a visão era aterradora, que o homem jamais pensou um dia enfrentar. Na pia, não tinha mais espaço para tanta louça suja, no fogão panelas sem tampa com comida azeda e moscas sobrevoando, o chão com pisos faltando, denotava falta de higiene de longa data, saem pela porta dos fundos e chegam até o quintal, onde havia algumas casas sobrepostas, mal construídas e sem acabamento, um verdadeiro cortiço.
Em meio a um funk alto vindo de uma caixa de som, três jovens com roupas que as deixavam praticamente despidas, rebolavam balançando a bunda sensualmente, e duas crianças imitando aquela dança e cantando a música com letras obscenas na maior naturalidade. Numa velha mesa de madeira, alguns rapazes fumavam, bebiam e jogavam dominó, em meio as gargalhadas e palavrões. Em frente de uma das casas, duas mulheres entretidas em seus celulares, completamente alheias a todo aquele barulho.
—Senhora Hilda, que lugar é esse e quem são essa gente?
—Seus familiares, as suas noras, netas e seus netos com alguns amigos e as criancinhas são filhos de suas netas.
—Jesus! Agora estou reconhecendo, aquelas mulheres que falam nos celulares são minhas noras. E a situação de minha filha, meus netos e bisnetos? Fala o idoso contristado. Quanto tempo perdido na vida.
—Aquele que tem um desenho de uma aranha tatuado na cabeça é o seu neto que te visitou no asilo com sua filha.
—E o marido da Patrícia está no trabalho?
—Ele tem outra família, foi embora faz alguns anos, pois não aguentou a vida que levava no casamento devido ao relaxo de Patrícia.
—E meus filhos?
—Entre aqueles que jogavam sinuca, dois eram seus filhos.
—Mas, eles não trabalham?
—O mais velho já se aposentou, o caçula faz uns bicos de pedreiro para ganhar algum, mas bebem demais e pouco trazem para ajudar. E a Patrícia, recebe sua aposentadoria, paga a mensalidade do asilo e o restante divide com os irmãos, senão eles vão para cima dela com socos e palavrões, mas, tem mês que gasta toda a parte dela e o valor do asilo, só depois da ameaça de te mandarem de volta para casa é que ela paga.
—Puxa, então ela paga logo, para não cumprirem a ameaça? E pensar que, quando fui para o asilo, ela chorou tanto e implorou para os irmãos me deixarem na casa dela e que cuidaria de mim. Mesmo sendo difícil pois com meus netos eram pequenos, ainda trabalhava fora. E quando me visitou pela última vez, disse que se eu confiava nela, em deixar meu cartão e minha senha para receber, e pagar o asilo direitinho. Agora estou entendendo, na época em que eu preciso fazer prova de vida, é ela quem liga para o asilo e a senhora Julia me acompanha até o banco com a minha carteira de identidade.
—Claro que sim, afinal se o senhor não fizer, vai ter problemas e evidentemente o asilo também não receberá suas mensalidades. Mas, fique calmo. Fala Hilda confortando o homem.
—Vendo agora a minha família, em que tipo de gente se resumiu, eu penso. Fui para o asilo porque estava inválido, fiquei longe e não assisti essa metamorfose familiar. Mesmo não voltando a andar, nesses anos todos, fui bem tratado, não me senti sozinho e ganhei muitos amigos. Por outro lado, se eu continuasse presente na vida deles, seria como um pai velho, doente, invisível e ignorado, sem utilidade nenhuma a não ser os proventos, que não são poucos. Quando Patrícia pediu para cuidar de tudo, não vi nada demais. Disse que custava quase tudo que eu recebia para me manter no asilo, e olha que me aposentei com um bom salário. Mas, não sabia que era suficiente me custear e depois dividir o restante como um despojo entre os irmãos. Chego à conclusão, que esse afastamento me preservou de muito sofrimento e que o asilo é meu paraíso.
Agenor então, olhou para o rosto de todos, se despediu com lágrimas nos olhos, não de tristeza da saudade que eles jamais sentiram dele, nem de sua ausência que nunca lhe fizeram falta, mas da vontade imensa de retornar na paz do asilo, sentar-se novamente no alpendre para ouvir o canto dos pássaros. Respira fundo e diz.
—Vamos voltar ao asilo Senhora Hilda, quero acordar desse pesadelo.
—Ao asilo não senhor Agenor, mas para verdadeira vida que está a sua espera, livre de todos esses empecilhos que te impedem vivê-la plenamente.
E ali mesmo, no meio daquele quintal, desapareceram.
Parabéns!!!! Que conto tocante. Cada publicação da autora é um presente. Um bálsamo para a alma. Fico ansiosa na espera de novas publicações.
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Excelente história! De pura realidade do século XXI. Fiquei emocionado do começo, meio e fim.
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